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A Pandemia e o Trabalho Missionário 22/06/2020

A Pandemia e o Trabalho Missionário

Nestes dias de imensa incerteza, muito tem se falado e discutido sobre o futuro da obra missionária. Definitivamente, penso que é um assunto extremamente relevante e essencial, mas se ele estiver focado na ação missionária e não na Missão de Deus (Missio Dei) propriamente dita. A missão de Deus, apesar de muita gente querer insistir, não vai mudar. Certamente, a obra missionária como fazemos hoje, essa sim já mudou e vai continuar mudando. Não vejo mal nisso. Mudanças, para melhor, sempre são bem-vindas. 

No meio de toda esta pandemia, uma coisa é certa: ganhamos tempo para pensar, refletir, analisar a situação em que estávamos, estamos e estaremos.

Ao longo dos anos, entendo que o movimento missionário brasileiro se tornou muito pragmático, o que não é necessariamente ruim. Mas, o pragmatismo pode provocar, em alguns casos, uma atitude de se desconsiderar a ação de Deus, baseando a nossa ação unicamente em nossos planos e metodologias. Por este ponto de vista, a pandemia nos forçou a parar e a perceber que os nossos planos, projetos e métodos não eram tão infalíveis. Muitos deles foram afetados em cheio com a chegada da pandemia e com a paralisação de muitas atividades que vínhamos desenvolvendo.

Eu não tenho ignorado os riscos que essa pandemia pode trazer à vida das pessoas e às nossas organizações. Quando fazemos uma pequena leitura do universo à nossa volta, percebemos dois grupos distintos. Um deles que minimiza os efeitos e resultados da COVID-19, achando que tudo voltará ao normal, e outro que maximiza os efeitos da pandemia, anunciando o caos ou, como vi recentemente, a usando a expressão “Era do Gelo Missionária” para prever os quadros mais graves.

Acredito que toda essa discussão tem me levado a me posicionar de uma forma mais otimista do que a grande maioria dos líderes e pessoas que tenho conversado. Tenho sido acusado de não olhar com atenção aos efeitos atuais e futuros que a pandemia está trazendo e irá trazer. Meu otimismo é baseado na minha crença de que Deus continua sendo Deus e sua missão continuará a ser realizada até que o último indivíduo da terra ouça as boas novas de salvação. Nossas práticas e projetos vão mudar, mas a missão de Deus continuará, com ou sem a nossa presença.

Outro fator importante é que entendo ser temeroso tentar prever o futuro da ação missionária.  Ainda estamos em meio a incertezas, e aparentemente nossas dificuldades serão regionais e pontuais, muito diferentes de outros movimentos missionários. Esperar que os impactos para brasileiros sejam os mesmos que para americanos ou asiáticos é muito simplista. Vou pontuar isso mais adiante. Outros ousam apresentar sugestões ou propostas para o futuro imediato, mas entendo que ainda estamos vivenciando o dia a dia e será preciso esperar um pouco mais. Então, teremos uma ideia mais clara de como fomos atingidos para que finalmente possamos visualizar, discutir e projetar o futuro. 

Quando me refiro ao meu otimismo, levo em conta o fator que algumas culturas missionárias, a meu ver, estão em desvantagem. O movimento evangélico brasileiro sempre lutou muito para estabelecer sua ação missionária. Nossa economia sempre foi desfavorável e por isso acabamos nos tornando experts no envio missionário sobre pressão econômica. Nós sempre reclamamos muito da nossa crise econômica, mas olhando o momento em que vivemos eu diria que ela tem nos ajudado a passarmos melhor por este momento. Tudo isso deveria ajudar a sermos mais resilientes diante das dificuldades que estão sendo postas a nossa frente. 

Tenho visto pesquisas e, até mesmo, ouvido diferentes líderes globais dizerem como há uma geração de missionários brasileiros que sabem lidar bem com as diversidades e se mantem firmes em seu chamado e propósito ministerial. São todos? Obviamente que não. Mas, hoje contamos com uma segunda ou terceira onda de missionários brasileiros presente no campo que tem suportado essa e outras tantas crises que têm nos assolado com o passar dos anos.

A revista Christianity Today menciona em uma de suas matérias que missionários do Sul Global aparentemente têm vantagens diante de outras culturas missionárias. A matéria menciona especialmente missionários da África e da América Latina:


“Suportar tais dificuldades requer fé e perseverança significativas, que muitos no Sul Global têm em abundância. Essa semente espiritual tem sido frequentemente moldada por décadas de pobreza, guerra, colonização e instabilidade política. Crescer na pobreza, não sendo tão privilegiado, nos deu a sensação de que podemos fazer muito com muito pouco.”[1]


Dito isso, penso que algumas perguntas para reflexões precisam ser feitas antes de projetarmos qualquer cenário.

Estamos no início de uma transição de uma era missionária para outra?

Espero que sim. Realmente espero que haja mudança, especialmente na nossa prática missionária. Anseio que possamos nos desapegar das grandes estruturas que foram criadas em torno da ação missionária. Ao longo da nossa pequena história, supervalorizamos as estruturas. Investimos em coisas que já não conseguimos manter. Nesse sentido, precisaremos aprender a sermos mais flexíveis, lidar com modelos mais orgânicos, mudar nosso modelo de liderança. desenvolver a participação da igreja local e assim por diante. Mas é importante dizer que essas mudanças já eram necessárias antes da pandemia. A situação atual talvez só nos forçou a tomar um rumo que lutávamos em não seguir anteriormente.

Também vale a pena recordar que ao longo da história missionária da igreja, Deus precisou intervir pontualmente para refocar ou redirecionar sua Igreja e seus discípulos. O que dizer da intervenção de Deus na vida de Pedro em Atos 10? Tal iniciativa ocorreu somente para reafirmar algo que Ele já havia definido e predito através de Jesus, em Atos capítulo 1:8 – O testemunho do Reino foi definido e disponibilizado através do Espírito Santo para todas as etnias conhecidas da terra, não somente aos Judeus, como foi a prática missionária dos discípulos logo após o Pentecostes.

Deus continua sendo Deus e sua missão continuará a ser realizada até que o último indivíduo da terra ouça as boas novas de salvação. Nossas práticas e projetos vão mudar, mas a missão de Deus continuará, com ou sem a nossa presença.

Se pudéssemos iniciar uma discussão primária eu diria que essas são algumas áreas que hoje podem demandar nossa atenção: 

Finanças

O relatório mais recente sobre a situação de agências e igrejas enviadoras apresentado pelo COMIBAM[1] sobre a crise da COVID-19 mostra que finanças está em destaque como uma das maiores dificuldades a serem enfrentadas. Isso inclui a luta para manter o apoio econômico dos missionários no campo. A queda na arrecadação das igrejas, devido à interrupção de seus cultos presenciais por meio de ordenanças governamentais, fez com que a renda caísse drasticamente.

Esse relatório tem suas respostas provenientes de 30% das organizações brasileiras, mas os resultados não diferem muito do total das respostas. Vale a pena salientar que no caso do Brasil, os problemas relacionados a finanças são anteriores a questão da pandemia. Os missionários, especialmente aqueles servindo fora do país, já estavam enfrentando muitas dificuldades por conta das alterações cambiais. Com a alta do dólar, que entre Janeiro e Março chegou a 30% e, aumentou ainda mais em Abril e Maio, sem dúvida, a situação se agravou. Contudo, houve uma queda nestas últimas semanas. Também, vale a pena salientar que problemas financeiros ou de sustentabilidade sempre foram um desafio em nossa realidade. Mas, como mostra as pesquisas da AMTB,[2] nunca foi impedimento para o aumento no número de envio missionário.

Tenho conversado com líderes e missionários no campo e percebi que, passado cerca de 90 dias da pandemia, o número de saída prematura do campo por conta de questões financeiras é mínimo. Seria então possível afirmar que que a crise trouxe dificuldades financeiras, mas não ao a ponto de prejudicar a permanência dos obreiros no campo? 

Aqui é preciso expressar uma palavra de gratidão à uma parcela da Igreja brasileira, que sempre foi muito generosa com o movimento missionário e a meu ver, nesta pandemia, tem demonstrado ainda mais generosidade. Falo da igreja como instituição, da igreja corpo (membros) e seus pastores e líderes. Digo isso por experiência própria, pois sou missionário, levantado meu próprio sustento para a minha manutenção.

É claro que, com respeito às estruturas missionárias, essas sim estão sofrendo. A meu ver, vão sofrer ainda mais, especialmente aquelas que nunca se preocuparam em ter um planejamento financeiro adequado e nunca exerceram a mordomia financeira. Citei acima a supervalorização à estrutura. Isso, neste momento, começa a ter um reflexo muito forte. A pergunta que muitos líderes estão se fazendo é: Como manteremos nossa estrutura com recursos reduzidos? Ao longo da caminhada, alguns construíram grandes elefantes brancos e hoje sofrem para conseguir mantê-los. Não sou contra estrutura, entendo que ela é necessária, mas ela não pode ser onerosa e não pode ocupar a maior parte dos nossos esforços e de nossos recursos financeiros. As estruturas precisam ser funcionais e devem sempre buscar “fazer mais, com excelência, com menos recurso”

Outro fator relacionado à finanças é que, como sempre “lidamos com o dinheiro dos outros”, poucos de nós pensamos em planos emergenciais. Minha caminhada ministerial à frente de uma organização missionária, ensinou-me muito a respeito disso. Hoje, temos reservas para 2 a 3 meses de operação destinada para situações de emergência em que não haja nenhuma entrada financeira. Mas, é importante dizer que nossas as reservas operacionais não são maiores que os nossos fundos de apoio e amparo aos missionários.

Há algo a se aprender quanto a estrutura e finanças. As vacas gordas e magras e as espigas viçosas e secas, na história de José, têm algo há nos ensinar: Planejamento em tempos de abundância são a garantia para o enfrentamento em tempos de escassez.

Missionários no campo

Aqui está o nosso maior bem e onde deve estar a nossa maior preocupação. Garantir o bem-estar emocional, físico e espiritual de nossos obreiros no campo deve ser o foco de todos os nossos esforços. As outras áreas devem ser secundárias.  Devemos alocar nossos recursos em nossas equipes de base e em todas nossas outras ações.

Mantê-los saudáveis nos diferentes aspectos é o que irá garantir a continuidade daquilo que já foi planejado, iniciado e implementado. Você pode imaginar quais dificuldades podem acontecer se em pouco tempo perdermos toda nossa força missionária presente nos diferentes campos?

Há muitas afirmações que esse é o objetivo do envio e que agora todo investimento deverá ser feito nos obreiros locais, pois a vez dos “estrangeiros” se encerrou.  Acho prematuro dizer isso, ainda que eu defenda que todo processo de plantação de igreja deve ter como alvo o envio do missionário pioneiro para o avanço dos autóctones. Também, vale a pena lembrar que a Missão de Deus é policêntrica­­­—de todo lugar para todo lugar—como tem afirmado nos últimos anos a Comissão de Missão da Aliança Evangélica Mundial – (WEA MC).[3]  Precisamos recordar que a Grande Comissão não é uma tarefa que vai se revezando pela Igreja representada nos diversos países. A Grande Comissão é uma tarefa a ser executada pela Igreja de Cristo espalhada sobre a face da terra. A ação de Deus através da Igreja em um país de forma especial não ignora o chamado de Deus a Igreja em outro. A vocação divina é para a Igreja em todos os lugares.

Novos Missionários

Uma grande preocupação que aflige o meu coração é com os novos missionários. Aqueles que estão no processo de saída ou os que serão enviados num futuro próximo. É justo dizer que temos uma nova geração que não é tão resiliente como no passado. Uma geração que, não por culpa deles, não aprendeu sobre o sofrimento como algo inerente à fé e ao serviço cristão. Como organizações e centros de treinamento, precisamos ensinar e ajudar a nova onda de obreiros brasileiros. Oro para que essa nova onda de missionários seja muito grande e aprenda a lidar de maneira bíblica com as adversidades. Segundo Ronaldo Lídório, em uma de suas palestras[4], os missionários brasileiros são considerados hoje uma das culturas com maior dificuldade de adaptabilidade cultural. Isso faz com que obreiros nunca encarem as dificuldades como parte de seus ministérios, mas, ao contrário, reajam em muitos momentos de forma inapropriada ou de forma vitimista.

Precisamos cuidar dos que estão às portas para saírem aos campos e nos preocuparmos em treinar bem os novos missionários para as adversidades futuras. Richard Malm[5] escreveu:

Se eu insistir em me proteger, estar no controle e saber o que vai acontecer quando eu obedecer, nunca obedecerei. Eu nunca vou sair do barco. Vou sentir falta da aventura com meu Senhor. Porque Deus não vai me dar essas respostas antes do tempo. Se Ele fizesse, removeria o risco, removeria a fé. Onde não há risco, não há fé. Risco e fé andam de mãos dadas.

Em outro momento ele diz:

Se nosso objetivo é a segurança, precisamos parar de enviar missionários. Mas se nosso objetivo é glorificar a Deus com nossas vidas, então nos resta apenas uma opção: obediência. Como afirma Mark Batterson, pastor da Igreja da Comunidade Nacional em Washington, DC e autor de “Chase the Lion”: “Chega um momento em que você precisa parar de viver como se o objetivo da vida fosse chegar com segurança à morte. A vontade de Deus não é um plano de seguro. A vontade de Deus é um plano perigoso. A vontade de Deus pode matá-lo.[6]

Quanto mais investirmos no ensinamento e na preparação de nossos missionários, ajudando-os a serem cada vez mais resilientes diante das adversidades no exercício missionário, mais conseguiremos avançar em direção aos não alcançados: os campos que nos restam alcançar com as boas novas do Evangelho são os mais difíceis do ponto de vista religioso, político e geográficos.

Conclusão

Certamente há muitos outros fatores que precisam ser estudados e considerados neste momento e que poderão afetar ou, até mesmo, mudar as nossas ações futuras. Uma coisa parece muito clara nesse momento: não é possível fazer grandes planejamentos e/ou grandes predições a respeito do futuro ou até mesmo seguir alguns dos planos anteriormente previstos.

Será necessário caminhar de forma cautelosa, passo a passo, analisando as mudanças estruturais na nova sociedade que se estabelecerá, para definirmos novos novas práticas missionárias. 

Alguns de nós (e eu sou um desses) somos muito orgulhosos de nossas políticas, história ou tradição. Ainda que as políticas sejam boas e nossa história exista para ser celebrada, a verdade é que, em momentos como o que estamos enfrentando, as tradições, histórias e, até mesmo, as políticas não nos ajudarão, pois segundo Malm: “As políticas tendem a desligar o pensamento.”[7] Esse será um momento de exercemos o pensamento criativo e um momento de profunda busca da presença e direção de Deus para nossas vidas e instituições. Precisamos responder aos desafios e também, de forma sábia e que reflita a perfeita e agradável vontade de Deus.

Uma coisa certamente não mudará: a nossa esperança em meio a tudo isso!  A presença de Cristo conosco na nossa caminhada missionária (Mateus 28:20).


Paulo Feniman é pastor presbiteriano, formado em Teologia pela FTSA – Faculdade Teológica Sul Americana e formado em Computação Gráfica pela UNOPAR – Universidade Norte do Paraná. Atualmente é Diretor Executivo da MIAF/AIM SOUTH AMERICA – Missão para o Interior da África, onde coordena a mobilização e envio de missionários sul-americanos para diferentes povos africanos e atualmente preside a AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileira. É casado com Patrícia, pai de Felipe e Gabriela.



[5] Malm, Richard. Commission To Every Nation: How People Just Like You Are Blessing The Nations (pp. 53-54). Ore Publishing. Kindle Edition.

[6] Idem pp 33

[7] Malm, Richard. Commission To Every Nation: How People Just Like You Are Blessing The Nations (p. 64). Ore Publishing. Kindle Edition.

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